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Os Cabelos de Dalva

Retirada da série Lendas da Nossa Gente, que reúne histórias da Grande Florianópolis.
Esse causo aconteceu em Praia Comprida, onde passei toda a minha infância e parte da minha adolescência.
Como é bom saber histórias sobre o local onde cresci.
Espero que apreciem tanto quanto eu apreciei! X)

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Dalva era uma linda jovem, Moradora da Praia comprida, em São José. Impressionava os homens com sua beleza. E tinha uma coisa que dava inveja a muitas mulheres. Pro terror dela, até as bruxas  se remoiam de inveja do dote: os longos e belos cabelos negros. À luz da lua, refletiam tons de azul de tão negros que eram. Ela passava pela rua, e todo mundo olhava pra trás para ver mais um pouquinho. No caminho ficava aquele rastro de perfume dos cabelos, nos homens ficava a cara de tolo de quem não entende tanta belezura.

Mas numa madrugada de lua cheia, se ouviu um gritedo na casa da bela Dalva. Toda a família acordou. Até os vizinhos acordaram e correram, de lampião na mão, pra casa da jovem, para saber o que era. Do quarto onde Dalva costumava dormir vinham berros e gargalhadas de mais de uma pessoa. A porta não abria, pela janela não se entrava. Quando o berreiro acabou, a mãe de Dalva foi a primeira a conseguir entrar na peça onde dormia a filha. Quando entrou, Dalva já estava sozinha, sentada na cama, em estado de choque, nem conseguia chorar, e com os cabelos transformados em um emaranhado só. Tinha nós em tudo que é fio de cabelo da cabeça de Dalva. Entre os nós, muitos pedaços de unhas compridas e sujas - mais pedaços do que uma pessoas poderia cortar das próprias mãos. Não tinha dúvida: era trabalho de mais de uma bruxa.
Vizinhos tentaram de tudo, passaram óleo, cremes, mas os nós tinham um jeito impossível de desatar.

Pura bruxaria feita por causa da inveja.

Não teve jeito, Dalva teve que raspar a cabeça. Quando voltou a crescer nunca mais foi o mesmo - nem tão preto, nem tão liso. Dalva já não chamava tanto a atenção dos homens nem das mulheres. As bruxas estavam satisfeitas com a tristeza de Dalva e nunca mais atacaram a jovem.

(Baseado na história contada por Gelci José Coelho, morador da Enseada de Brito, em Palhoça.)





Pedra, árvore e gente

Muitos dos contos e fábulas que conhecemos hoje, tem uma origem mais assustadora e maligna do que a maioria das pessoas imagina. Essas estórias tinham, em sua maioria, o intuito de assustar as crianças para que elas não fizessem determinadas coisas. Outras eram apenas relatos fantasiados de verdades mais cruas. Séculos depois, estas estórias foram reescritas de forma a tornarem-se mais inocentes e apresentáveis.

Essa prática perdura em muitas das estórias posteriores e o resultado é que estes contos - e aqui eu incluo os folclóricos mais recentes - perderam o interesse para a maioria das pessoas. Passaram a ser vistos como algo sem graça, herança desbotada dos mais velhos ou algo bobo para crianças. Assim, são poucas as pessoas que irão apreciar estas coisas pelo seu valor per se. E é por isso que eu tive essa pequena idéia de transformar algo que, eu confesso, também achava bobo, em algo mais atraente, revelando somente o potencial escondido em uma velha tradição.

Esse conto é dedicado ao meu amor, dona desse blog. Espero que gostem.



Pedra, árvore e gente
(G.F. Matos)

   Um pescador chega em casa depois de passar a madrugada em alto-mar, provendo seu sustento.
Uma fina linha de fumaça pode ser vista saindo da chaminé. O homem encontra a casa aquecida e o café fresco, ainda quente. Sua filha dorme enrodilhada em uma manta velha, aos pés do fogão. Ele recolhe a menina em seus braços e a põe na cama. Sempre que ele chega do mar, ela está a esperá-lo, ainda que, muitas vezes, adormecida. Ele senta junto à mesa e saboreia o café, enquanto se distrai com a respiração leve da menina. Os tempos são difíceis, o trabalho é escasso. Os resultados da pesca mal conseguem suprir a subsistência. Os habitantes da cidade parecem não se importar com isso, e sim com a vida alheia, com estórias rasas e fantasias inúteis.

    No dia seguinte, o homem se dá conta que adormecera na cadeira enquanto pensava na vida e em suas opções. O sol já ia alto e sua filha já havia iniciado as tarefas domésticas. Ele se levantou e a abraçou, ternamente. Desde que sua esposa morrera, a garota era sua única preocupação no mundo. Ele sentia-se muito mal pela sua condição financeira e por não poder dar as coisas que sua filha merecia - afinal, ela era sempre prestativa e o apoiava em tudo. Por isso, havia alguns meses, o pescador guardava cada centavo que lhe sobrava. E naquela semana, ele teria dinheiro suficiente para comprar um presente para sua filha. Com sorte, antes de ter que partir para a alto-mar novamente.

    Foi numa sexta de muito vento que ele voltou para casa arregando um pacote azul com um grande laço de fita vermelha em cima. A menina ficou parada por alguns segundos, olhos arregalados, sem reação. Então correu e abraçou o homem, atentando-se ao pacote só depois que ele lhe afastou carinhosamente. Desfêz o papel gentilmente, dobrando-o para que pudesse usar novamente, secretamente pensando em como retribuir. E lá estavam eles, brilhantes e azuis - um par de sapatinhos de vinil. Sem coragem para calçá-los, ela passou a noite olhando para eles, como se possuíssem um quê de magia. Só desviou sua atenção quando lembrou-se de algo que queria contar a seu pai - uma estória que ouvira da vizinha. Mas o pescador estava cansado e não queria ouvir estória alguma. Já bastava as pessoas medíocres da vila e as vidas alheias que elas gostavam de acompanhar, mais do que a delas próprias. Ademais, ele partiria novamente para alto-mar no dia seguinte.

    Dois dias depois, o homem retorna e encontra a casa quieta e fria. Nenhum sinal de sua filha.
Assustado ele bate nas casas vizinhas em busca de alguma informação, mas tudo que lhe dizem parece loucura, fruto de imaginações férteis, alimentadas por anos de baboseira. O pescador se recusa a acreditar em uma palavra sequer e retorna à casa, com receio que sua paciência se esgote e ele acabe perdendo o controle. Indignado, ele espera por umas poucas horas e depois, não mais suportando a demora, calça suas botas e parte. Rezando para que esteja tudo bem, mas temendo pelo pior, ele vasculha a praia e seus arredores à procura da menina. À luz do lampião, ele procura com cuidado entre as rochas do costão, sem sucesso. As horas avançam e a lua já se faz alta no céu, quando o homem desaba a chorar, já desesperado.

    Sua única alternativa são as histórias sem sentido que seus vizinhos balbuciaram. Talvez elas
tivessem algum fundo de verdade, que fizesse algum sentido. Ele não podia acreditar que havia algo maligno escondido naquele morro. Essas coisas não existiam na vida real, mas talvez a loucura daquele povo tivesse transformado um perigo real em um perigo imaginário - o que só fazia a raiva dele crescer. Talvez, se eles não tivessem distorcido a verdade, sua filha tivesse levado a sério e tomado mais cuidado. Tomado de raiva, o homem pegou um facão e reabasteceu o lampião com querosene. Ele subiria o morro atrás de sua filha e do que quer que houvesse lá em cima. Se nada encontrasse, no entanto, algumas pessoas iam ter que se explicar de uma maneira ou de outra.

    A lua vai alta e as horas mortas já se aproximam, quando ele chega a uma clareira no alto do monte. Uma sensação estranha se apossa do pescador, os pêlos da nuca se eriçam, o estômago embrulha. Um cheiro irreconhecível, porém angustiante, parece preencher o ar noturno. Por um momento ele fraqueja e imagina se a criatura temida pela população é de fato um mito. Ele engole em seco e balança a cabeça, tentando se livrar daqueles pensamentos incoerentes. Enche os pulmões e se prepara para gritar o nome de sua filha, mas pára em meio ao movimento, prendendo a respiração. Um som estranho corta os ruídos noturnos - um som chilreante, como água fervendo. Permanecendo imóvel e concentrado, o homem consegue sentir uma pequena vibração no solo, como centenas de pequenas pancadas distantes. Novamente ele tenta se convencer de que existe uma explicação razoável para aquilo tudo, mas não consegue. Dizem que a coisa come tudo, pedra, árvore e gente. Ele observa uma das árvores ao redor da clareira e percebe marcas peculiares nos troncos, nas pedras. Até a trilha que sai da floresta tem uma marca peculiar.

    O pescador dá um passo atrás e faz menção de virar-se para ir embora, mas algo lhe prende os olhos. Um vulto negro começa a deslizar, saindo de uma das fendas da rocha. O silvo se torna mais alto, mais distinto, assim como a vibração sob seus pés. Aquela criatura saída dos pesadelos se enrodilha e desliza pela encosta - olhos vívidos e malignos refletem a luz prateada do luar, centenas de pequenas patas castigam o chão em uníssono. O pobre pescador nada pode fazer, paralizado de terror. Aquela coisa parece não notar sua presença e vai se afastando, cascateando morro abaixo, como uma serpente feita de sombras e medo. Quando o pobre homem recobra suas capacidades, ele nota que as patas da criatura não são uniformes: cada par parece diferente em tamanho e cor. Quando suas pernas permitem, ele avança cautelosamente, a tempo de ver a cauda do bicho livrar as rochas.

    Ali, mais de perto, ele pode ver melhor a coisa cujo apetite é insaciável. A serpente que tudo come: pedra, árvore e gente. Abaixo dela, centenas de pares de pés - descalços, de botas, de tênis de sapatos. Todos os miseráveis que cruzaram seu caminho ali, condenados a carregar o causador do próprio fim. O pescador sente a boca secar e até mesmo a sua raiva empalidece ante a verdade serpenteante e negra. Suas pernas fraquejam e ele cai quando o último par passa por ele - sapatinhos de vinil, azul e brilhantes.

    Os moradores da vila dizem que, naquela noite ouviu-se um grito terrível vindo do morro. Apesar de ainda haver muita discussão, a maioria das pessoas concorda que o que a voz dizia era:

    - BERNUNÇA!

    E reza a lenda que, depois daquilo, sempre que alguém avista a Bernunça e sobrevive para contar, fala sobre um par de sapatinhos azuis, seguido por botas de pescador.




Arreda, arreda,
Senão ela te come!
Arreda do caminho
Que a Bernúncia tá com fome!

A bernunça é personagem da estória do boi-de-mamão (boi-bumbá ou bumba meu boi).
Diz a cantiga:

TAVA DEITADO NA SOMBRA
QUANDO OUVI FALAR EM GUERRA
QUANDO ACABA ERA A BERNUNÇA
QUE VINHA DESCENDO A SERRA

A BERNUNÇA É UM BICHO BRABO
JÁ ENGOLIU MANÉ JOÃO
COME PÃO, COME BOLACHA
COME TUDO QUE LHE DÃO

(G.F. Matos)

Pequena história explicando o pq do nome da linda praia.


Joaquina

Na Lagoa do século XIX, passou-se uma estória de amor e tragédia envolvendo o jovem casal Joaquina e Alberto. Joaquina filha de seo Aparício e dona Aninha, e Alberto um jovem pescador da Lagoa. Casal amoroso, Joaquina pedia-lhe que não fosse mais ao alto-mar, reclamando da ausência constante do seu amor. Alberto assegurou-lhe então que aquela seria sua última vez. E assim, aconteceu o inesperado. Albertinho não voltou mais do mar desaparecendo da vida de Joaquina na mesma ocasião em que perdera Ana, sua mãe e seu avô, restando-lhe somente o pai para cuidar. Mesmo morando na Lagoa, apesar da recusa do pai, passou a atravessar o areial (dunas) até a praia do mar grosso justificando tirar mariscos das pedras do costão para ajudar no orçamento da casa. Na verdade, estes passeios serviam simplesmente para que, olhando o mar, lembrasse do seu eterno amor. Passados três anos da morte do marido, a moça antes alegre e cheia de vida, demonstrava sinais de mulher sofrida e maltratada pela saudade. Como uma sina que lhe perseguia, numa manhã morre Aparício, em casa, em sua cama, como se entregasse voluntariamente à Deus. Assim, Joaquina deixa a Lagoa para morar na praia do mar grosso, isolando-se numa casa ao pé do costão. Sendo que, ao amanhecer de um dia de setembro sobre as maretas e a areia da praia, Joaquina é encontrada morta. Talvez por não poder mais suportar a falta dos seus entes queridos. A partir daí, a praia do mar grosso passou a ser conhecida como a praia da Joaquina.

(Baseado no livro Joaquina - A Garota da Praia, de Ademar C. de Mello)